14/04/2024

Como eu vi o meu pequeno mundo até ao 25 de Abril de 1974

 

Ao chegarmos perto do 25 de Abril de 2024, dia em que se comemoram os 50 anos da Revolução dos Cravos, resolvo escrever alguns apontamentos de como era a vida antes desta data tão importante. Faço-o segundo o ponto de vista do jovem que eu era na altura, saí de Peniche ainda novo, aos 17 anos, para trabalhar na Lisnave. Depois, com 18 anos, fui cumprir o serviço militar na Força Aérea Portuguesa, de onde saí uns meses depois do 25 de Abril de 1974.

Para falar deste tempo tem de se falar das condições de vida do povo, na maioria esmagadora, analfabeto, pobre, sem cuidados de saúde garantidos. Poderei falar de mim como miúdo. Que me lembre, nunca passei fome. Depois da escola primária, da quarta classe, queria ir para o mar como o meu pai, mas ele – avisado e conhecendo bem os sacrifícios dessa vida difícil – mandou-me para a Escola Industrial e Comercial. Em boa hora o fez. Aos meus pais agradeço o sacrifício de me manterem até ter o Curso Industrial, seguindo assim uma vida diferente daquela para qual estaria destinado.

Em nossa casa, na Travessa da Fé, não havia luz eléctrica. Acabei o curso a estudar à luz de candeeiro. Também não havia água canalizada, tinha de acartar a bilha cheia de água ao ombro para o aparador, etc. Mas nós tínhamos tecto, agasalhos, não havia acepipes, mas comida quente na mesa. Quantos milhares não tinham as condições mínimas?

Falar de antes do 25 de Abril é falar dos invernos de muitas dificuldades, como por exemplo, no defeso da sardinha, os barcos estavam parados durante três meses, e sem ganhar sustento para a casa, funcionava o “rol”, nas mercearias, algumas, vendiam fiado os bens mais essenciais para sustento da família, dado que os pescadores não conseguiam ter economias na sua esmagadora maioria, e só mais tarde quando os barcos partiam para a pesca e começavam a haver alguns ganhos, então iam regularizando aos poucos as suas dividas, até começar tudo de novo inverno seguinte, de referir que os pescadores sem ganharem mais por isso tinham de encalhar o barco, pintar, reparar as redes  e depois do defeso vinha o bota abaixo.

Referir ainda que Peniche além de atraso cultural, era profundamente dividida por classes, até nos salões de baile, havia o Clube Recreativo, a Associação Recreativa Penichense e o velho salão dos Bombeiros a que chamavam “o esfrega”, por certo que correspondiam à própria divisão das classes mais carenciadas às mais abastadas.

Em miúdo, lembro-me de alguns habitantes de Peniche de Cima serem presos e perseguidos por serem contra o regime. Por exemplo, lembro-me do Carlos Leiria e do irmão, do ti João Barbeiro (chefe dos Bombeiros), do ti Zé do Carmo, do Zé Sales, do Álvaro Pitorro, do Belmiro Alves, entre outros.

Quando corria o ano de 1966, travei conhecimento com o Horácio Rufino, cujo pai tinha vindo para chefiar uma grande padaria em Peniche de Cima, do qual me tornei amigo. Tornámo-nos bons amigos e conversávamos sobre tudo. Ele vinha de Vila Franca de Xira, um meio muito industrializado. Eu lia muito sobre os mais diversos temas, o hábito da leitura vinha desde os 12 anos, quando o carro da Gulbenkian parava em frente ao Café Moderno.

Paralelamente, tínhamos um núcleo de amigos em Peniche de Cima, com o qual fazíamos tertúlias e onde se discutia sobre tudo. A este propósito, lembro com saudade o Silvino Viola e o Zé Amaro, que animavam as nossas noites com as suas violas enquanto entoávamos canções, chamadas de intervenção, do Jorge Neves, Pedro João, Totoi, o “Querido” todos eles, infelizmente, já partiram.

Este ambiente de tertúlia começou na década de 1960, em pleno regime ditatorial, e criou raízes. Os mais novos acompanhavam com imensa atenção as nossas discussões sobre política local, nacional e internacional. Posso dizer que fui, a par de outros, um dos dinamizadores naturais desses debates. Este costume continuou já depois do 25 de Abril de 1974, (já sem a minha presença) contou com a participação de pessoas com um grau de instrução superior à nossa. Estou a lembrar-me, por exemplo, dos médicos que vinham para a periferia. E, sim, aquilo era um café onde se discutia tudo e onde se respeitava a ideia do outro.

O que nos unia era, sobretudo, a oposição a um regime que nos asfixiava. Basta recordar, por exemplo, que na Escola Industrial e Comercial, dirigida na altura pela directora Rolanda, os rapazes estavam separados das raparigas, inclusive nos recreios. Ora, as raparigas, para acederem ao vestiário e à papelaria, tinham de passar por um corredor envidraçado, onde nós, os rapazes, as víamos passar. Como resolução do que seria um problema, a directora mandou pintar todos os vidros (e eram muitos!) de branco para que não as pudéssemos ver. Referir a obrigatoriedade de comparecer aos sábados na “ordem unida” da mocidade portuguesa, este pormenor é importante pois era baseado nas juventudes de Mussolini. Este era o regime vigente ali, o qual só foi aliviado, e bem, quando veio o novo director Sardinha, que eu já não apanhei.

Mas, voltando ao Rufino, ele vinha de zonas muito politizadas o que levava a que as nossas conversas acabassem quase sempre por recair na situação política. Mas éramos dois jovens a querer viver a vida. Uma vez, em 1966 ou 1967, apresentou-me um amigo dele, sem nenhum deles entrar em pormenores sobre a sua identidade concreta. Pediu-me para arranjar uma ida às Berlengas para acamparmos lá os três. O barco foi o Berlenga, arranjei uma tenda emprestada, levámos comida e lá fomos. Correu tudo bem até que, finalmente, o tal amigo se apresentou, era filho de um preso político que estava no Forte de Peniche. Até haver comida, lá continuámos. Creio que ao quarto dia voltámos.

Entretanto, fiquei a saber que ele estava numa casa para auxílio aos familiares dos presos que vinham para Peniche passar uns dias e fazer as visitas possíveis. Também fiquei a saber da solidariedade que existia em relação aos filhos dos presos, no que diz respeito a roupas e não só. Cheguei a vender uns selos para angariação de fundos de auxílio aos familiares dos presos políticos

Como disse anteriormente fui para a Lisnave com 17 anos o que me afastou de Peniche, e, em Outubro de 1968, fui para o serviço militar. Soube mais tarde que o Horácio Rufino havia sido preso pela PIDE, quando estava no ensino superior, e infelizmente já não está entre nós. Quanto ao outro amigo do acampamento da Berlenga, vi-o 50 anos depois, num evento realizado na Fortaleza, em 2017, na inauguração de um memorial de homenagem aos presos políticos que passaram pela Fortaleza de Peniche.

Coisas e acções de que me lembro de antes do 25 de Abril

O CICARP era um núcleo de cinema da Associação Recreativa Penichense em 1967, tendo durado até 1969. Teve um êxito extraordinário junto da juventude e não só. Ainda se aguentou durante três anos com sessões de cinema, filmes e documentários que não estavam acessíveis na sala de cinema de Peniche, alguns proibidos. Havia debates depois de cada sessão e foi o CICARP que organizou a primeira Feira do Livro em Peniche com um êxito estrondoso. Promoveu sessões de poesia e música, nomeadamente com Mário Viegas e, penso, com Adriano Correia de Oliveira. Foi uma pedrada no charco desta terra. Tendo em conta que estava já no serviço militar, não acompanhei grande parte das acções. Até que a Direcção da Associação (talvez pressionada) acabou com o CICARP tal como este era, ou criou demasiadas dificuldades de modo a extinguir-se.

Com o desaparecimento do CICARP, nasceu a Cooperativa Livreira HUMUS, então, na ideia de uns tantos filhos de Peniche, grande parte estudantes em Lisboa, outros trabalhadores a viver na terra. Aqui aproveito para prestar homenagem aos grandes impulsionadores do projecto, e que já partiram, Carlos Vital, Adelino Leitão, José Maria Costa, José Rosa e outros, como dinamizadores da Cooperativa, redigindo os Estatutos, com reuniões em Lisboa, e outro pessoal de Peniche ou a trabalhar cá, como o Desejável, o Horácio Bombas, o Malheiros, e outros que não me vêm à memória, cada um a dar o seu contributo conforme a sua disponibilidade (De referir que só menciono os nomes de pessoas já falecidas).

A sede da Cooperativa Livreira era na Rua Estado Português da Índia, e tinha uma cave que servia de armazém para os diversos materiais, sala para reuniões quer de Direcção ou abertas a sócios. Os sócios podiam adquirir livros com desconto, penso que à volta de 10%, inclusive os livros escolares, o que dava grande jeito naqueles tempos.

Lembro-me que fui eu, numa das minhas folgas da tropa, a quem alguém da Direcção pediu para fazer o Registo da Cooperativa no Tribunal das Caldas da Rainha, onde tive, claro, de me identificar e ficar registado. Alguém pôs a circular que se faziam reuniões políticas na cave da Cooperativa, o que era mentira, e por decisão do Governo de Marcelo Caetano, através de um decreto, penso que de 1971, a mesma foi extinta, à semelhança do que aconteceu a outras idênticas no país.

Esta extinção deu origem ao nascimento da livraria Arco-Íris, na Rua Alexandre Herculano, com instalações modernas, e onde também assisti a uma sessão de poesia com o Mário Viegas. Não me lembro quando a livraria encerrou.

Corria o ano de 1969, depois de Salazar ter caído da cadeira, quando se dá início a uma tentativa tímida do regime marcelista de campanha eleitoral, com eleições para a Assembleia Nacional. A CDE concorreu pela primeira vez, além do partido do regime, a União Nacional, e da CEUD. Nas sessões de esclarecimento, durante a campanha eleitoral, encontravam-se normalmente dois agentes da PIDE na frente da sala, para melhor controlarem a situação, além dos que estavam como informadores e que desconhecíamos. Nesse período, dentro da minha Unidade, divulgava as ideias democráticas junto de alguns camaradas, correndo, claro,o perigo que se sabe.

Já nas eleições de 1973, lembro que a sede era no primeiro andar de onde foi a Associação Recreativa Penichense, na Rua José Estevão. Nesse ano, como estava no serviço militar perto de Peniche, em Montejunto, sempre que podia dava apoio e assistia a reuniões.

Entre 1964 e1973, lia o “Diário de Lisboa” ou o “Popular”, vespertinos e o matutino o “Século”. Depois em 73 apareceu o “Expresso”, com uma visão mais moderna da sociedade, que também cativava os leitores ansiosos por uma mudança de ares.

De resto,importa sublinhar que, naquele tempo, não se podia falar abertamente sobre nada e não podia haver ajuntamentos. Por exemplo,no pátio da Escola Industrial e Comercial eram proibidos mais de três alunos à conversa. Num café, ao conversarmos com amigos, tínhamos de espreitar por cima do ombro, pois os informadores estavam onde menos se esperava.

Entretanto, a Guerra Colonial continuava e os nossos jovens, alguns amigos e colegas de escola lá estavam. Alguns morreram, principalmente na Guiné, Angola e Moçambique. Até que veio finalmente aquela madrugada que eu esperava, como Sophia escreveu no seu poema “Esta é a madrugada que eu esperava, o dia inicial inteiro e limpo…

Nessa altura, eu estava em Peniche, pois quatro dias antes tinha nascido o meu filho e fiquei para as formalidades do registo de nascimento. Quando no dia 25 de Abril vou para a Unidade, pelas 7 horas da manhã, na camioneta até à Dagorda, onde esperava o carro da Força Aérea, que me levava para a Estação de Radar na Serra de Montejunto, percebi que os sons do rádio não eram os habituais. Além de haver silêncios, dizia-se então que havia um golpe militar em Lisboa. Quando entrámos no carro militar, fomos informados da situação. Foi-nos dito que a Unidade estava de prevenção rigorosa e os civis só podiam subir até à aldeia de Pragança. Havia tropa a fechar a estrada de acesso ao cimo da serra. Esta situação era desconhecida, mas como em 16 de Março tinha havido aquilo a que se chamou o Golpe das Caldas, que fracassou, todos ficámos em suspenso. Como a Estação de Montejunto dependia do GDACI de Monsanto, não tinha ainda aderido ao Movimento das Forças Armadas, talvez algum ministro se tivesse refugiado nos subterrâneos da Unidade de Monsanto (?). Fazíamos reuniões pelos cantos e o facto é que o Comandante andava armado. Estávamos sem saber para que lado pendia.

Passou-se o dia 25, sabíamos que o golpe tinha sido vitorioso para o Movimento das Forças Armadas, mas nós ali nada. Passou o dia 26 e 27, dia de libertação dos presos do Forte de Peniche – e eu gostava de ter assistido ao acontecimento, porque além do mais sairia o meu amigo Horácio Rufino – mas continuávamos retidos. Até que no dia 28 de abril pudemos (os que não estivessem de serviço) finalmente sair.

Para terminar, refiro que o dia 25 de Abril de 1974 representou para mim, um dos dias mais felizes da minha vida e também dos mais importantes, de todo o meu tempo de vida.

Quando cheguei a casa beijei a minha esposa, peguei no meu bebé ao colo, e disse, estamos a assistir à revolução militar a que chamam dos cravos, que será por ventura, a mais pura que os militares fizeram até hoje no mundo por nós conhecido, e eu sinto uma alegria imensa, apesar das dificuldades da vida.

FGV

14/04/2024

08/04/2024

Exposição Fotográfica de Francisco F. Felix - "ANIMALS" no CIAB

 Visitei a exposição do amigo Francisco Fidalgo Félix no CIAB em Atouguia da Baleia, gostei do que vi, está como uma espécie de continuidade das suas publicações na rede social, tal como ele próprio diz fecha-se a Trilogia do Património Natural - Materiais Geológicos, Plantas e Animais. como apreciador de fotografia claro que há fotografias de animais feitas com outros meios e em outras zonas de outra qualidade, mas penso que o Francisco não teve em conta isso mas tão só a diversidade animal, que foi encontrando e que algumas até se podem enquadrar em material pedagógico, no fundo o objectivo foi cumprido. Já expressei os meus parabéns à exposição no livro e agora através deste meio quero reforçar o meu apoio e agradabilidade da exposição. Parabéns Francisco, que venha outra. Seguem algumas imagens captadas da mesma.















22/03/2024

#fotografar


 Quando pintas um quadro, tiras uma fotografia ou quiçá escreves um livro, e questionas-te porque a minha pintura não tem aceitação, a minha fotografia idem, nenhum editor quer agarrar no livro, se bem que eu e os amigos e família considerem esses trabalhos todos bons, essa questão é simples de explicar em face da maneira como está organizada toda a sociedade que conhecemos, a aceitação da obra é feita não em nome da qualidade da mesma mas do nome do seu autor, que por sua vez, claro que tem de ter arte na obra que produz, mas tem de levar um empurrão qualquer de uma mão visível ou invisível, Vincent Van Gogh apenas vendeu um quadro em vida, morreu na pobreza, hoje os seus quadros valem milhões.

14/03/2024

O barco "AVÔ RITA" foi desencalhado ao final da tarde 14MAR24


Depois de várias tentativas saiu finalmente da praia de Supertubos a embarcação "AVÔ RITA" que ali havia encalhado em 02MAR24. Na imagem o rebocador "MONTE da LUZ" trazendo-o de reboque.
 

13/03/2024

#fotografar


 Se quisermos definir o que é o Património Histórico de Portugal, poderemos dizer que é uma riqueza que reflete a identidade, a memória e a cultura do país e será preservado para as gerações futuras, no nosso país o Património é classificado e dirigido pela Direcção-Geral do Património Cultural. Ora esta manhã no meu passeio fotográfico registei novamente o estado deplorável em que se encontra o pano exterior da Muralha norte do Baluarte da Gamboa, alguém está a falhar, porque um dia, pode ser tarde.

08/03/2024

À Conversa com... Maria Gertrudes - uma mulher do povo

Preâmbulo/Declaração de interesses – Esta conversa foi gravada digitalmente em 2018 com a minha mãe, na altura com 90 anos de idade e na posse das suas perfeitas faculdades mentais, nomeadamente a sua memória fascinante. Hoje, a minha mãe ainda está viva, felizmente, agora com 95 anos, e resolvi passar a escrito parte dessa conversa, que incide fundamentalmente sobre as agruras de vida desde a sua infância.

“Chamo-me Maria Gertrudes Vieira (MGV), nasci em Peniche de Cima e vivi no Forte da Luz até que a minha sogra me chamou para viver com ela e o meu marido. Nunca aprendi a ler nem a escrever, que foi sempre um desgosto para mim, mas nunca foi impeditivo de saber fazer contas. Tenho uma história de vida muito difícil, mas sempre duma mulher lutadora.”

Mãe, conte-me um pouco da sua história de vida desde o princípio, aquilo de que se lembra.

MGV – Fui para o Forte da Luz morar tinha 8 anos de idade, lá fui criada com os meus irmãos. Fui mais criada no Quebrado do que em casa, com muita amargura, muita fome que passava, eu e os meus irmãos. Depois, fui crescendo e quando tinha 9 anos chamaram-me para ir servir. A casa para onde fui servir era rica, mas passava muita fome. O que é que eu faço? Volto para casa e digo à minha mãe que já não quero ir servir para aquela casa. Depois, apareceu outra que negociava peixe-seco,  morava nos Quatro Cantos, tínhamos que ir com aquelas caixas muito grandes para o Alto da Vela secar o peixe, púnhamos ao sol, depois à tardinha tínhamos de ir recolher e acartar. Levei uma vida muito amargurada, ainda era uma criança. Depois, com saudades dos meus irmãos, voltei para casa.

Não tinha tempo para brincar?

MGV – Não, nunca tive tempo para brincar, as minhas brincadeiras eram só no Quebrado, mas a minha mãe começava logo a gritar por mim, para ir fazer isto e aquilo e vinha logo corrida.

Mas, entretanto, começou a trabalhar na fábrica do peixe…

MGV – Comecei a trabalhar na fábrica do peixe com 13 anos, mas durou pouco tempo. Tinha uns 13/14 anos, cheguei a casa da minha mãe e disse que queria ir para a fábrica. Fui para a fábrica do Algarve Exportador, ganhava sete tostões à hora, mas aquele dinheiro não rendia nada, passava fome à mesma. Então, disse à minha mãe que queria ir vender peixe com ela, lá me comprou uma canastra mais pequena e fui com ela para a venda do peixe, Íamos naquele rancho de seis ou sete mulheres pela estrada fora, eu era a mais pequenina delas todas, chegávamos a um sítio em que nos separávamos e cada qual ia para o seu lugar de venda nos diversos casais e aldeias. Depois, juntávamos todas no mesmo sítio e lá vínhamos para casa (cheguei a andar a pedir à noite, ia às casas mais ricas e davam sempre qualquer coisa até me chegavam a dar um prato de sopa).

Quando chegava da venda, uma vez tinha o senhor Joaquim Bilhau à minha espera, para ir trabalhar à noite nos armazéns que ele tinha à entrada de Peniche de Cima, com tinas de peixe para escalar e para salgar, para tratar do peixe até às 10 horas da noite, e assim foi continuando, ele era uma pessoa muito bondosa e gostava muito de mim, nesta altura tinha uns 14 anos. De resto, lavava roupas para fora, caiava as casas durante parte do dia, lavava as roupas casas sempre em casa de pessoas com mais posses.

O tempo passou e foi crescendo, até que já ia sozinha para a venda do peixe. A que horas é que ia para a ribeira para o peixe?

MGV – Eu ia logo à uma hora da madrugada à espera dos barcos com peixe, chicharro principalmente. Depois, trazia o latão carregado, lavava o peixe na bica de Peniche de Cima, ia para o Forte da Luz que era onde morava com a minha mãe, pai e irmãos, e pelas três da madrugada ia a caminho de S. Bartolomeu dos Galegos com o latão à cabeça, descalça. Juntávamos um rancho de cinco ou seis e cada uma ia para o seu destino, íamos sempre juntas até um certo sítio, normalmente era o Alto do Veríssimo, numa zona de pinhal. Depois, separávamos, umas para o Toxofal de Cima, Toxofal de Baixo, etc. e, à vinda para cá, juntávamos e vínhamos todas juntas. Se alguma se atrasava, as outras espetavam uma cana na terra para avisar que já tinham partido. Acontecia muito comigo, porque eu vinha de mais longe e ficava muito triste quando chegava e via a cana espetada, então tinha de vir sozinha para Peniche. Cheguei a ter os pés quase em sangue, lavava os pés com vinagre porque estavam tão gastos que a pele era muito fina e quase em sangue. Sempre andei descalça, só calcei sapatos dos 20 anos em diante. Depois, como já tinha dito, dado que a fábrica não dava nada, continuei a vender peixe com o latão à cabeça, a pé, descalça pelas estradas fora, inclusive com o meu filho na barriga até que o tive com 21 anos.

Fui trabalhar a dias quando era preciso, nunca parava, nem me deixavam estar parada, todas queriam que eu fosse trabalhar para elas, ia lavar roupa para os pocinhos, depois ia lá uma rapariga com o meu filho para lhe dar mama, a minha vida foi sempre uma vida de escravidão.

Depois que o tempo passou já ia para a Usseira na camioneta, e quando tínhamos de ir para o Sobral da Lagoa, tínhamos de subir à camioneta para pormos o carrego lá em cima. Subíamos as escadas com o latão e púnhamos o peixe lá em cima, naquele tempo era assim, era a camioneta do José Henriques. Primeiro, comecei de Peniche a pé até S. Bartolomeu dos Galegos e para cá a pé também, depois mais tarde é que foi na carreira das 10h30, já o meu filho era vivo. Fui para a Usseira, depois Sobral da Lagoa, que tinha uma ladeira íngreme a subir com o latão à cabeça cheio de peixe e com uma ceira para a ajuda das despesas. Depois, quando vinha para baixo, ainda trazia roupa para lavar no rio cá em baixo debaixo da ponte, era a roupa do meu filho, porque eu estava em casa da minha sogra e ela coitadinha não podia, até que vinha para Peniche na camioneta das 6h30 da tarde. Foi sempre uma vida muito difícil.

Até que, quando o meu filho estava em idade de ir para a escola, o meu marido me retirou da venda do peixe para eu estar mais em casa a tratar dele, mas depois não podia parar, pois tinha de ganhar algum dinheiro e comecei a fazer rendas de Peniche até às 2 e 3 horas da madrugada, à luz do candeeiro, na casa da minha sogra que era onde eu estava.

Dessas pessoas todas que iam a pé vender o peixe aos casais quais estão vivas neste momento?

MGV – Desse tempo, das que iam vender o peixe a pé para os casais, só quem está viva sou eu e a tia Olívia.

 

Há uma altura em que foi trabalhar para a Unipeixe, com que idade?

MGV – Foi quando a Unipeixe abriu, tinha eu uns 40 anos. Mais tarde, adoeci do coração e reformei-me por doença, mas não me sentia bem parada e fui para o negócio da renda. Vinha uma senhora de Portalegre buscar as rendas que eu ia comprando e nunca houve problemas, até que umas deixaram de trabalhar devido à idade, e já não compensava a senhora vir de Portalegre buscar poucas rendas. Depois deixei tudo, ainda fui fazendo umas rendas para os netos, até a saúde o permitir. Depois já nem à renda podia estar, por causa das dores das costas e arrumei a almofada dos bilros para sempre.

 Tenho 90 anos tive sempre uma vida de trabalho duro e amargurado, mas valeu a pena. Tenho três netos e cinco bisnetos e nunca houve problemas com o meu filho e nora, agora cá estou à espera da “carta de chamada”.



 

07/03/2024

#fotografar

Fotografar, é um acto solitário, em que nos encontramos sós (no meu caso sempre), tendo como companhia a máquina e nós próprios com todos os sentidos apurados, tento trazer o realismo da imagem que vejo para a máquina, depois ao analisarmos, verificamos que grande parte das fotografias não correspondem ao que desejávamos, tentamos noutro dia, e o que realmente queríamos pode ter sido captado, na fotografia que eu faço, a máquina não engana, ou é ou não é, nada depende de outros, registamos o que está ali, na paisagem, na rua, no mercado, é evidente que agora há software que altera tudo, põe pessoas onde não existiam, tira algumas que não devem estar, mete cabeças de uns no corpo de outros, etc. Não tenho nem quero ter conhecimentos para manusear essas aplicações, tal como as televisões do nosso quotidiano nos encharcam com tudo o que querem, para que docilmente as nossas mentes sejam manuseadas a seu belo prazer. Nos intervalos de fotografar para além de outras actividades que tenho de fazer, a minha segunda ocupação são os livros, continuo a comprar livros e a ler em todos os momentos disponíveis, que eu próprio dedico temporalmente à leitura, ler faz bem ao espírito, à mente e é um exercício que nunca deixarei de fazer enquanto física e mentalmente for capaz. Quem lê, mais dificilmente será ludibriado, desde os 10 ou 12 anos que leio frequentemente.

 

04/03/2024

Naufrágio na Praia de Supertubos do "Avô Rita" na madrugada de 02MAR24

Na madrugada de dia 02MAR24 encalhou entre a praia de Supertubos e o Molhe Leste em Peniche, a embarcação "Avô Rita", os seis tripulantes foram resgatados, aquela é uma zona de grande rebentação e esta semana começa a etapa do Campeonato de Surf, precisamente em Supertubos.